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segunda-feira, 24 de junho de 2013

Tornar-se Mãe é Perigoso


Ontem eu fui à Roda Bebedubem. Fazia quase um ano e meio que eu não ia, talvez um pouco menos. Fui quinzenalmente durante a gestação do Pirulito, apenas deixei de ir nas últimas semanas, pois o deslocamento de ônibus de uma cidade pra outra e andanças à pé começaram a ficar mais cansativas. Depois que ele nasceu, basicamente não fui por ele ser pequeno demais e depois por medo do que as conversas poderiam me causar. Eu escrevo sobre gestação, parto, maternidade, puerpério, mas confesso que falar sobre isso mexe muito comigo e com frequência eu desabo (é, tô começando a pensar em terapia...). Não tô pronta pra desabar em público.

Além de sentir necessidade de retomar esse tipo de encontro, que me fala à alma e me faz verificar com certa insistência que estou no caminho certo, fui devido ao tema: A Chegada do Irmão. Ok, o irmão chegou aqui em casa há um ano, um mês e doze dias, mas diariamente me vejo em situações inusitadas. E a Flávia, antes de marcar a roda, postou no grupo do FB um texto que eu já tinha lido algumas vezes antes, mas que não tinha parado muito pra pensar. Dessa vez o texto me pegou pelo pé.

Vou tomar a liberdade de pegar uns pedaços do texto que a Flávia tão gentilmente publicou lá no blog da roda também e transcrever aqui, permitindo-me reflexões acerca da minha própria experiência.

No dia seguinte, meu marido trouxe minha filha de 2,5 anos, Jessie, ao hospital para conhecer o seu irmão. (...) A garotinha que entrou no quarto, segurando nervosamente a mão do pai, que subiu a cama do hospital e se jogou sobre mim num abraço afetuoso não era a mesma a quem eu tinha deixado em casa dois dias antes. Uma metaformose bizarra aconteceu. De repente, ela parecia enorme. Não era mais uma menininha, de jeito nenhum. Comparados aos delicados membros do bebê, as suas mãos e pés pareciam enormes. Comparada à fragilidade do recém-nascido, a sua vitalidade vigorosa parecia quase ameaçadora. Num intervalo de apenas 48h, os meus olhos se desacostumaram a ela.

Pirulita esteve em casa comigo e meu irmão durante o trabalho de parto. Ela me acompanhou desde as primeiras dores, dormiu no horário de sempre, mas tenho uma vaga consciência dela no colo do meu irmão enquanto eu estava deitada na minha cama, já com a enfermeira me acompanhando. Tenho uma vaga lembrança dela ainda nos braços do meu irmão quando eu saí pro hospital. Ela veio no dia seguinte. Chegou com meu pai e irmão bem no meio de uma confusão com o chefe da obstetrícia. Eu estava desabando, acabara de ser levantada a cama, meu filho estava sendo levado pro banho, tudo muito confuso, não lembro a sequência das coisas. Ela me viu levantar pro banho e, devido à força da gravidade, muito sangue desceu pelas minhas pernas, esparramando-se no chão. Ela fala disso até hoje, associou o nascimento do irmão à isso. Não me lembro de vê-la como um gigante naquele momento, tenho fotos dela deitada na cama ao meu lado e do irmão. Em contrapartida, tenho fotos dela no mês de nascimento deles dois e fotos de 4 meses depois onde a diferença é gritante. No mês de maio, ela era um bebezão de quase 3 anos. Em setembro, era uma menina. As formas arredondadas do rosto se foram, os dedinhos mais curtos e gorduchos esticaram. Se a metamorfose acontecera externamente, o que será que aconteceu internamente? Eu não percebi isso no momento, na verdade nem pensei. Eu me dei conta ao montar uma retrospectiva de fotos pro aniversário de 4 anos e isso veio na minha cabeça assim que terminei de ler o texto.

 

Os meses seguintes foram um pesadelo – ruins para mim, infinitamente pior para minha filha, um pesadelo que nunca terminava. Eu sempre me preocupei se seria capaz de amar o novo bebê, mas a verdade era que naqueles primeiros dias com duas crianças, não era o bebê mas a minha filha que eu tinha dificuldade de amar.

Estupefata pela minha frieza, ela se agarrou, tentou chamar a atenção, se afastou, em resumo, fez tudo o que pode para tentar recuperar a nossa antiga proximidade. (...) Seus esforços cada vez mais extravagantes para chamar a minha atenção tiveram sempre o efeito oposto.

Eu estava pouco menos estressada que ela pela mudança na nossa relação. Era como entrar no seu quarto favorito e descobrir que tudo mudou de lugar : os móveis , os quadros, os objetos dentro do armário, os enfeites das prateleiras. Nada era como eu esperava ou como eu queria. Eu andava pela casa em estado de agonia, desorientação e perda.

(...) Cheia de culpa, atarantada pela falta de sono, descompensada hormonalmente, eu tinha pouca disposição para pensar ou lidar com o que estava acontecendo. A pouca energia que eu tinha era usada para coisas práticas e os deveres emocionais eram dirigidos totalmente ao bebê. Não porque eu queria assim, mas porque simplesmente era assim.

Honestamente, não sei se posso dizer que os meses seguintes foram um pesadelo total. Temos épocas melhores e piores, dias em que as dificuldades de ambas ficam mais gritantes. O que eu me lembro claramente é que as primeiras semanas foram muito ruins, principalmente pela minha condição emocional. Estávamos na casa dos meus pais e tínhamos um quarto pra ficar eu, ela e o bebê. Ela não quis, foi se agarrar à minha mãe e pai. Dormiu com eles, nem sempre aceitava que eu a alimentasse e desse banho, chorava muito com minhas ordens e pedidos. Vou ser sincera: eu não tinha de onde tirar forças pra acolher aquela criança nas mudanças que estavam acontecendo na vida dela. Eu não tinha condição de dar conta de mim, cuidava do menor por intuição. Chorei muito pelos choros dela, pelo distanciamento que se instalou. Depois de uns 15 dias, ela acordou no meio da noite e veio pra minha cama. Simplesmente se deitou do meu lado e dormiu. E eu chorei, interpretei como um sinal de que as coisas iam se acertar.

 

(...) havia a história não contada do impacto naquelas que sobreviveram aos partos difíceis, mas foram profundamente afetadas pela experiência, mulheres que se distanciaram dos seus filhos, de seus maridos e delas mesmas como resultado do impacto psicológico de tornar-se mãe.

Todos que trabalham com gestação, parto e maternidade frisam muito as coisas boas da experiência e acho mesmo que é tudo isso o que deve ser ressaltado. Temos muitos tabus a serem quebrados nesses assuntos. Mas há também coisas que só se descobre com a experiência e uma delas é o impacto do não-parto ou do parto violento ou dos abusos, enfim. Estamos começando a enfocar tudo isso recentemente. Eu tenho plena convicção de que muito do que aconteceu comigo e minha filha naqueles primeiros dias, talvez meses, tem a ver com o que ocorreu comigo. Tem a ver com a história de nascimento do irmão. Não tenho ilusão de que se as coisas tivessem corrido conforme o esperado nada teria mudado. Balela. Mudaria, sim, mas os impactos e dificuldades seriam outros, talvez. Eu encasulei, distanciei-me de todos, me fechei, chorava sozinha. As lembranças mais nítidas que tenho do primeiro mês de vida do Pirulito é de escuridão. Os flashes são sombrios, escuros, embaçados. Eu deleguei minha filha pra minha mãe e ainda bem que tinha ela e meu pai pra suprir as necessidades emocionais da minha filha naquele momento. E percebo que, mesmo agora, ela ainda corre pra eles quando algo está faltando pra ela (geralmente é atenção). Às vezes eu me culpo por isso, outras eu agradeço aos céus por ela ter avós com quem possa contar e que possam oferecer o acalento que ela precisa.

Uma noite, mais ou menos um ano após o nascimento do meu filho, eu estava pondo os dois para dormir.Nós tínhamos escutado a fita de Woody Guthrie cantando Goodnight Little Darlin’ e eu me abaixei para beijar a cabeça de Jessie e disse: “Boa noite minha pequena”. Ela se virou para mim pensativa e perguntou: “Eu ainda sou a sua pequena? Mesmo com três anos e meio?”

Pirulita nunca verbalizou tão claramente o quanto ela gosta de ser pequena também, mas volta e meia percebo algumas infantilizações no seu comportamento. Nos meus melhores momentos, pego no colo, brinco que ela é meu bebezão (com frequência ela não gosta quando uso essa palavra). Mas percebo que acabo exigindo dela alguns comportamentos que nem tenho certeza se ela tem condições ou idade para corresponder. Muitas vezes é o choro que não consigo reconhecer, outras vezes é a necessidade do banho na banheira ou de que seja dada a comida na boca. Ou então o pedido de que pare de assistir o programa na tv e olhe o que ela está fazendo ou ainda a fala alta e simultânea à conversa matutina minha e do pai. Preciso de muito centro e percepção pra não reagir de forma instantânea e pedir que ela pare ou faça sozinha. Mas, cada dia com mais frequência, me pego respirando fundo antes de cortar a menina e oferecendo um pouco de atenção, seja dando colo diante do choro ou desviando os olhos do programinha de tv pra escutar sua história mirabolante sobre o fantasma do bambu.

Minha tia, com quem eu um dia me abri, me deu um conselho sábio: “Essas coisas acontecem. Você não pode proteger seus filhos da vida. Dê tempo ao tempo. O amor vai voltar.” E com o tempo, voltou. Não só com o tempo, mas com trabalho duro e esforço consciente. As pessoas falam que é preciso trabalhar o casamento e foi assim que eu trabalhei meu relacionamento com minha filha. Eu arrumei tempo para fazer coisas juntas, divertir-nos juntas, tempo de atenção exclusiva para reconstruir a confiança dela em mim e para que eu a conhecesse outra vez. Pessoalmente, eu cultivei o hábito de amá-la tão cuidadosamente como um vinicultor cultiva seus vinhos. Eu reeduquei a maneira de vê-la, de pensar nela como eu fazia antes: como adorada e adorável. Gradualmente, com o tempo, o hábito tornou-se natural e sem esforço como tinha sido originalmente.

Hoje mesmo, ao trazê-la de volta de sua casa, minha mãe falou pra Pirulita que levaria o Pirulito pra casa um dia desses e que eu iria ter um dia de menina com ela. De fato, resgatar esses horários exclusivos é algo fundamental. Acho que não conseguimos fazer nada ainda só nós duas. Tudo foi feito em comunidade. A exclusividade que ela tem tido é na casa dos avós, que nunca levaram o caçula junto com eles. Ela se queixou de minha mãe querer levar só o menino com ela. Equivaleria a ela perder a exclusividade lá também.


Quando Jessie tinha uns seis anos, nós viajamos de férias com outra família. A filha deles tinha a mesma idade do nosso filho, a mesma idade que Jessie tinha quando ele nasceu. Vendo a filha de 3 anos dos nossos amigos, eu me dei conta que eu não tinha lembranças da Jessie nessa idade. Era como se eu tivesse perdido minha memória ou parte dela, naquela época. Como se eu tivesse sofrido uma espécie de amnésia emocional, uma cegueira temporária do coração.

Faz pouco tempo, eu perguntei a Jessie sobre essa época da vida dela e parece que algo semelhante aconteceu com ela: “Quando as pessoas me perguntavam sobre o que eu lembrava de ter um irmãozinho, eu dizia que minha mãe tinha ido ao hospital muito doente e ficou lá por dois anos. Acho que na verdade foram duas semanas, mas é assim que eu me lembro: você não estar por um longo tempo.”

Assim que tomei ciência do tema da roda, fiquei pensando no que tinha mudado ao longo desse ano. Só consegui pensar em duas coisas: meu cansaço aumentou e a necessidade de eu e meu marido ficarmos um tempo só nós dois também. E não consegui pensar em mais nada. Quero acreditar que é porque estamos nos adaptando. Mas, ao ler esses dois parágrafos acima, fiquei pensando se não estou sofrendo o mesmo tipo de amnésia, até mesmo como forma de proteção psíquica. Hoje não tenho condições de avaliar se é bom ou ruim a tal amnésia, se é esse o mal que sofro. Eu também não me lembro de coisas da época em que meu irmão nasceu (a diferença de idade minha e do meu irmão é a mesma que a dos meus filhos, eu sou a mais velha também). Será que eu apaguei meu sofrimento daquela época? Ou será que eu só não me lembro porque é algo muito distante e eu era de fato muito pequena? Prefiro pensar na segunda hipótese, tanto no meu caso quanto no caso da minha filha, se ela vier a sofrer do mesmo apagão.

Se antes de eu ter o meu segundo filho alguém me alertasse para o sofrimento emocional que eu poderia ter, eu teria acreditado? Eu duvido. A idéia de que qualquer coisa pudesse me fazer deixar de amar, por um instante sequer, a minha menina preciosa e maravilhosa pareceria ultrajante. E ainda parece.

De fato, muito da maternidade a gente descobre quando já se está lá. Aliás, tudo sobre o assunto a gente aprende depois de se tornar mãe. E é perigoso, pois é um amor sem tamanho, que só se multiplica conforme o número de filhos aumenta, faz com que reavaliemos cotidiana e diariamente quem somos, o que desejamos ser pros nossos filhos, o que queremos oferecer a eles emocionalmente. É perigoso pois nos obriga a olhar pra dentro e a nos reconhecer nos olhos de cada um dos nossos rebentos...

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O trabalho Tornar-se Mãe é Perigoso de Elaine Miragaia foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.

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4 comentários:

  1. Adorei o texto, muito bom! Parabéns.

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  2. Caramba, estamos aqui em casa na perspectiva de ter outro filho tentando amadurecer a idéia...quando li os trechos então foi como flashes do que vivi quando minha irmã nasceu..o distanciamento da minha mãe foi tão grande que nunca mais nos achamos e mesmo porque ela reforçou tudo isso quando dois anos atrás me disse assim..." Não e que eu não te ame, só tenho mais afinidade com ela" a minha sensação e que nunca fui amada como merecia. Hoje quando meu filho pede um irmão me vejo sempre pondo empecilho falando que não e tão bom assim ter irmão...talvez inconscientemente sabendo que posso errar como minha mãe, não sei...espero que não. Bj Mãe de moleque

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  3. E pensar que a gente romantiza, romantiza, romantiza... enquanto eles não vem.
    Tinha tido acesso a esse texto que voce comentou e ilustrou, mas ver como a coisa aconteceu pra voce tornou ainda mais reais essas dificuldades, essas preocupações que devem sim existir.
    E vamos que vamo!

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  4. Oi Elaine... gostei muito do texto e realmente tem muitas coisas a refletir.... qd criança/ adolescente/ adulta (sou filha do meio de dois meninos), percebi a diferença de proximidade que tinha com meus irmãos ( o mais velho era meu herói... inalcançável... e o mais novo companheiro), a diferença de idade é 3 anos e meio do mais velho e 1 ano e 10 meses do mais novo, eu não lembro quando o mais novo veio, mais sempre o vi ali, agora o mais velho sofreu muito com a minha chegada... e eu senti isso na pele.... ele me rejeitava, afinal pra ele, eu era aquela que pegou o trono dele.
    Hoje com minhas duas filhas (com diferença de 3 anos e 3 meses) não quis que isso acontecesse, conversei bastante com diversas pessoas de culturas, idades e formações diferentes e o que achei mais interessante foi a ideia que me deram, sempre dar presentinhos para a mais velha dizendo que foi a caçula que mandou... Afinal só nos manda presente que gosta da gente.... e no dia do parto de urgência eu só queria me despedir da Iane... falar que ia buscar a Lena para ser a melhor amiguinha dela, só sabia chorar no hospital e haja banho... marido chamado as pressas no serviço... uma chuva temporal lá fora e eu no chuveiro chovendo nos olhos e no coração tb.... trouxeram a Iane que permitiram que entrasse no hospital, contei com alguns anjos.. a médica que autorizou uma bebê de ir ver a mãe no quarto(banheiro), vizinha que trouxe minha filhota, motorista e médico da ambulância UTI que me fizeram rir muito no caminho e ficavam me informando o tempo todo do meu maridão seguindo a ambulância com o chevetão preto na dutra a 110/120 em baixo de muita chuva. Minha mãe companheira, meu marido desesperado e desastrado....kkkkk até meu chinelo perderam...kkkkk...., o dvd do ultrasson dizendo q o nivel de LA estava muito abaixo do limite tb perdeu....
    Por fim a Lena nasceu e chorei com ela ao ouvi-la, estava viva, saudável e com fome.... já tinha leite e ela mamou com gosto....
    Qd chegamos em casa a mais velha estava na creche.. preparamos para ela ver a bb dormindo e eu ter um tempinho com ela... A Lena "trouxe" um presentão pra Iane da maternidade e depois disso todo dia fazia a Lena dormir pouco antes da Iane chegar, fiz isso por um bom tempo... mantive a rotina da Iane... Creche durante o dia e qd chegava em casa a bb estava dormindo e então eu tinha um tempinho só eu e ela.. funcionou bem....
    Passei o resguardo em casa com a ajuda de uma vizinha e do maridão... minha mãe e minha sogra vinham sempre... ficavam um pouquinho e iam embora...
    Fiz questão de não deixar a rotina da Iane mudar... hora de acordar, hora de dormir, quem trazia da creche... fiz as adaptações antes... e o tempo que tínhamos juntas era sempre no final da tarde...
    Isso não deixou que nos afastássemos...
    Brigamos muito nos duas... temos temperamentos muito parecidos.... somos teimosas por natureza... porem o que eu mais queria acredito que consegui... a irmã mais nova dela não ser uma ameaça mais sim uma companheira....
    É verdade que ela queria que a irmã já viesse correndo, falando e brincando.... isso esqueci de avisa-la antes que precisa esperar uma tempinho, mas acredito que consegui frisar que é para elas serem companheiras.

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