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terça-feira, 21 de maio de 2013

Relato de VBAC: O Parto de Tomás

O "VB" do Vbac - Relato de parto de Tomás parte 1 de 7


Já estava sentada na maca ha algum tempo e ainda sentia as dores lancinantes das contrações que aquela altura já não tinham mais intervalo. Cheguei a pensar no tempo, quanto tempo eu ainda teria dentro daquele processo, que já completava 48h. 
Olhei no relógio, era perto da meia noite. Pensei que o bebê chegaria só no dia seguinte. Acho que todos começavam a ficar aliviados com o silêncio que há muito meus gritos não respeitavam, enquanto se preparavam para a próxima etapa, o bebê ainda estava alto, demoraria um tempinho para que nascesse.
Mesmo anestesiada as dores não passavam. Foi então que a médica, um dos anjos que me acompanharam, me olhou com certa surpresa e disse: ele está aqui, ele desceu! Faz força Anne, ele vai nascer.
Não sei escrever, descrever. Não inventaram as palavras.
Outro dos meus anjos segurava um espelho para que eu conseguisse ver alguma coisa: olha para ele, disse a médica, ele está aqui!
Vi a cabeça do bebê coroando na minha pelve. O cabelo escuro. O relógio parou e o silêncio dentro de mim ficou absoluto. Havia ainda algum resquício da dor, e ia diminuindo. Comecei a fazer a força, qualquer força, muita força.
Segurava o ar e mergulhava nela, me contavam que as contrações eram longas e intensas, eu só fazia força. Estava chegando o momento onde fim e começo se encontram, não sei se há muitas oportunidades como essa na vida.
Só penso hoje que não há felicidade maior no mundo do que ter nascido mulher para gerar e trazer à luz o filho pela dor do amor e a mãe pela dor do parto.
Foi assim:
Não estava ligando muito para a contagem formal das semanas. Já havia lido em todos os lugares possíveis que ansiedade na reta final não ajuda em nada. Esqueci os cronômetros, as semanas, as datas e ia levando um dia de cada vez.
Mas a febre do Joaquim e uns episódios glamourosos envolvendo vômito na escada, terrores noturnos e umas espinhas no meu queixo me faziam mesmo pensar que algo podia estar acontecendo. Mesmo assim preferi não ligar. Não estava nada 100% pronto, mas também não havia muito a ser providenciado.
À 1h da madrugada do dia 14 de dezembro, acordei fazendo xixi na calça. Pensei, agora mais essa, xixi na calça. Segundos depois dei risada, e simplesmente me senti inundada de alegria, ah!! A bolsa! Tendo passado por uma cesárea agendada no primeiro filho, uma das minhas maiores angústias era passar pela vida sem saber o que seria a experiência de um trabalho de parto. Como pode alguém optar por não saber o que é trazer um filho ao mundo do jeito que a natureza previu? Como pude eu cair nesse absurdo?
Mas agora eu já dei um passo! A bolsa rompeu! Eu cutuquei o marido, como nos filmes, que bacana!
-       Pedro, levanta, minha bolsa rompeu. Tira o tapete aqui do lado que eu tô sentindo que se eu levantar vai cair tudo!
Não estava preocupada com o tapete. Eu queria ver a cor do líquido. Eu queria ver se tinha mecônio, se tinha tampão, se era papa de ervilha se era cristalino e transparente, se cheirava a água sanitária, se era bonito.
Pedro levantou como uma múmia e na metade do caminho catou um cobertor do chão e jogou em cima de mim, voltou a deitar.
-       Não, Pê! O tapete, quero ver a cor do líquido, se cair no tapete, eu não vou ver – tolinha, mal sabia eu a quantidade de líquido que eu ainda veria  nos próximos dias.
Voltou a se levantar e catou uma almofada, novamente lançou em cima de mim, mas antes que pudesse deitar levou um grito nas orelhas:
-       Presta atenção! Ta-pe-te!! Tira o tapete daqui!!
Olhou para mim com uma cara de indignado, levou o dedo à boca e parecendo um guarda de museu descabelado, me mandou calar a boca com um desengonçado shhhhhh! Tirou o tapete do chão e eu segui para o banheiro de chão branco onde desaguei em líquido e quase morri de felicidade: limpo, transparente, cheiroso... de água sanitária. Eu ria sozinha.
Me sequei e voltei ao quarto, Pedro dormindo.
-       Você está muito tranquilo para quem vai ter um filho entre hoje e amanhã!
O homem pulou da cama com uma cara desesperada de quem não tem ar para respirar. Os braços estavam arrepiados e ele me olhava em pânico: oque? Oque? Oque? Bem, teríamos um filho, isso a gente já sabia há alguns meses. O fato agora era: acabou a gravidez, esta é a última etapa, e daqui a pouco o bebê vai chegar. O que falta mesmo?
Contamos por mensagem para a preciosa doula. A orientação era clara. Descanse. Não é trabalho de parto ainda, você precisa guardar energias, descanse. Mas pode ser que engrene, fique atenta se tiver contrações me mande uma mensagem uma hora depois que tiver a primeira e vamos monitorando.
O que falta mesmo? Não tem nem água aqui em casa. Pedro foi ao mercado na madrugada. Eu sabia que teríamos um longo percurso pela frente, talvez não tivesse sido necessário nos abastecer naquele momento, e de fato, teria dado muito, muito tempo de fazer isso no dia seguinte, eu mesma poderia tê-lo feito, com as contrações dos pródomos e tudo, mas o que sabíamos nós? E se o negócio engrena? Melhor ir ao mercado.
Eu descansei aquilo que se pode descansar sabendo que seu filho está para nascer. Às 2:27h a primeira contração. Doloridinha e feliz. Pedro trouxe flores, abasteceu a geladeira e ficou comigo contando algum tempo o intervalo entre elas. Não era nada estável. Tentamos descansar de novo.
De manhã, Joaquim de pé. Café da manhã e por coincidência eu tinha consulta marcada na GO. As dores iam ficando mais intensas, e nessa parte cabe dizer que quando dizem que as contrações dos pródromos são suportáveis, eu estou aqui para atestar: são muito tranquilas. Eu estava tão feliz em estar cada vez mais perto do bebê, em ter a possibilidade de passar por aquele evento, em saber que ele nasceria por mim, dentro dos meus recursos e só haveria alguma intervenção caso fosse estritamente necessária, que sorria e achava graça a cada uma das contrações.
Olhando friamente esse pode ter sido um dos muitos motivos que levaram o meu trabalho de parto ao rumo que ele tomou, às consequências que se sucederam: eu estava me divertindo no começo.
Na médica, uma sessão de acupuntura e um tempo de reflexão. Se entregue, aceite, deixe acontecer. O trabalho de parto precisava engrenar.

 

O "VB"do Vbac - Relato de parto de Tomás - parte 2 de 7

Deixar-se virar bicho
O nascimento do meu primeiro filho foi de “a experiência mais maravilhosa da minha vida” para “a experiência mais maravilhosa da minha vida transformada em uma cirurgia que me tirou a chance de vivê-la plenamente” no decorrer dos 20 meses que o separaram do nascimento do meu segundo filho.
Nesse interim, eu que achava um absurdo qualquer um que dissesse que a cesariana não era um parto, passei a compreender completamente o pensamento que envolve esse conceito. Quem nasce de cesárea não nasce, é nascido. Quem tem um filho de cesárea não pari.
Eu sabia que entrar em trabalho de parto, passar por todas as suas fases, encarar os fantasmas que se apresentariam era parte dessa nova forma de nascer. De deixar o meu filho nascer e de me deixar renascer através dele.
Mas sinceramente, não havia livro, relato, grupo ou dinâmica nesse planeta que pudesse ter me preparado para a experiência transformadora do trabalho de parto. A Laura Gutman diz que a maternidade é o encontro com a sombra. Não consigo pensar em resumo melhor para o que acontece durante o trabalho de parto. Em meio à dor física, todas as suas dores emocionais, seus medos mais profundos, seus segredos, tudo aquilo que foi varrido para baixo do tapete se apresenta para você da forma mais crua: quando você não vai poder lutar contra, não vai poder se esconder. Ou encara, ou encara.
E o meu trabalho de parto foi assim. Quando depois de 24h desde o início dos pródromos começamos a engrenar, tudo foi ficando mais dolorido, e os fantasmas mais presentes. Ainda era fácil suportá-los, e ir levando um a um. Ainda era possível bater um papo ou fazer um lanche entre as contrações. Em algumas eu até cochilei.
Temia classificar a dor como muito intensa, eu sabia que não era nada perto do que eu sentiria. Fomos madrugada adentro, respirando. Pedro do meu lado, uma chuva intensa que me fez pensar que tinha vindo de propósito para me ajudar a lavar tudo o que eu precisava. Eu precisava me entregar para que o TP engrenasse.
Não havia livro, relato, grupo ou dinâmica nesse planeta que pudesse ter me preparado para as minhas próprias reações. Eu fui uma parturiente muito resistente, e assim as longas horas foram se estendendo.
Chegou a doula, com preciosos exercícios de respiração, massagens e dicas para canalizar as energias das dores para a sua função verdadeira: abrir o colo do útero, ajudar o bebê a descer, encaixá-lo na pelve.
Caminhei, agachei, tomei alguns banhos de chuveiro. Tinha contrações sentada, deitada, em pé. Doloridíssimas, mas suportáveis. Respirava e tentava me manter calma, em nenhum minuto desconfiei de que eu conseguiria, fazia absolutamente tudo como havia aprendido, respirava profundamente, tentava relaxar, procurava posições, tentava livrar a mente.
De novo um olho clínico e aqui mais um dos motivos que me atrapalhou: eu sou muito racional. Para parir é preciso se deixar virar bicho.
Amanhecia e finalmente eu estava em trabalho de parto.

 

O "VB"do Vbac - relato de parto de Tomás - parte 3 de 7

Parto Liso? No conosco.
Se há uma coisa que ficou completamente a desejar no meu processo de preparação para o VBAC foi compreender que o trabalho de parto é um processo íntimo. Parece óbvio, não é? Não é tão óbvio. Eu lidei muito mal com a presença das famílias, física e emocionalmente.
Vivemos em um tempo em que os nascimentos são encarados como eventos sociais. Não há uma crítica nessa frase, apenas uma constatação. Com a massificação das cesáreas e agendamentos em conformidade com a dinâmica das famílias, é natural que as tribos que vão receber os novos bebês sintam-se confortáveis com os partos previsíveis: aqueles que se sabe a hora, pelo menos o dia, ou onde o bebê vai chegar. Aqueles que são controlados, monitorados e fazem parte da maioria segura de nascimentos “sem risco”, “nas mãos de profissionais”.
Os partos são associados com perigo, não importava que eu não acreditasse nisso. Nossas famílias estavam muito preocupadas. Preocupadas de uma forma que me atrapalhou imensamente. Porque estiveram em casa, sempre na melhor das intenções, mas entraram no meu território. Tenta por a mão na gaveta onde está parindo uma gata, para ver o que acontece. Os olhos de dúvida, de reprovação, de pavor não deixaram de me acompanhar no restante do tempo em que eu passaria em TP. Eu não me desconectei deles, eles não se fizeram desconectar.
Na manhã do dia 15, Joaquim acordou e foi embora com meus pais. Outro fator que pesava na evolução do TP, eu não conseguia tirar minha cabeça dele. Fosse por preocupação em acordá-lo, em tirá-lo da rotina, em ficar longe dele, Joaquim não saía da minha cabeça. Dias depois já com Tomás nos braços, eu entendo um pouco melhor esse sentimento.
Sempre me gabei de ser livre de culpas. Realmente, nos quase dois anos de exercício da maternidade, nunca me senti culpada pelas atitudes que tomei com meu filho. Tudo parecia tranquilo, fruto de decisões talvez não melhores, mas possíveis. Parindo o segundo filho, o fantasma da culpa foi um daqueles difíceis de lidar. Como permitir que um segundo filho viesse ao mundo no cenário mais humano e cercado de amor, tão pouco tempo depois da estreia do primeiro, desrespeitado em seu tempo, seu corpo e seu espaço, com a minha assinatura em todos os papéis? Culpa. Foi bom te conhecer.
O trabalho de parto vinha e sumia. Parecia pegar fogo e virava brasa. Tudo fruto das minhas próprias sensações, receios e demais sentimentos – ou excesso de pensamentos.
Na tarde de quinta feira uma visita da médica, e uma notícia que me chateou: bolsa rota é perigo de infecção para o bebê. Ela expôs todos os cenários possíveis, falamos do tempo, das possibilidades de ir para o hospital e ajudar o trabalho de parto evoluir mais rápido, em prol da segurança dele. Em nenhum momento me forçou a nada. Simplesmente conversou conosco, pediu que deliberássemos.
Quando decidimos que não, eu não queria ir para o hospital, ela veio para cima, literalmente. Não vai ao hospital, então pode começar a fazer esse bebê nascer. Aqui começou de fato a maior experiência emocional, física e sensorial que eu pude ter na minha vida. Uma conversa regada à lagrimas, provocações emocionais. Médica e doula me tiraram do eixo, finalmente quebraram minhas proteções racionais externas, e sem a casca eu pude ver a fragilidade do meu ser, de corpo, alma e sentimento frente a frente com seus maiores medos: eu estava finalmente entregue.

Rosas despedaçadas, bebê.
Tive repentes de raiva, quebrei algumas coisas. Parei de tentar respirar na hora certa, fazer a coisa certa, pensar o pensamento certo. Me joguei nas dores, nas caminhadas fortes, pisando com vigor no chão. Ele tinha que nascer, ele tinha que descer, eu precisava dilatar. Agora havia um prazo, mais um ítem na minha lista de entraves.
Caminhei pelo quarteirão urrando de dor, assustei alguns passantes. Pulei na bola como uma doida, não para aliviar a dor, mas para provoca-la. Descobri uma posição no corredor, com as costas encostadas em uma parede e as mãos na outra, fazendo força contrária, que melhorava as dores. Ignorei essa posição, pois não queria relaxar, estava claro que era preciso que doesse, mais, mais forte, mais rápido, mais insuportável. E assim foi.
Parto liso? No conosco. Rugoso. Comigo as coisas acontecem. Não há nada na minha vida que eu queira e que eu não possa alcançar. Mas nada nunca é simples, não existe a palavra fácil. E muitas vezes se não todas, meus desejos não são realizados à perfeição. Eles simplesmente acontecem na base da luta, e são os possíveis. Não os ideais. O que os torna personalizados, com o carimbo à ferro e fogo do meu nome, da minha participação. E invocando Nietzche, Amor Fati!!
Eu nunca gritei tanto na minha vida. Era chegada a tal da transição.

O "VB" do Vbac - Relato de parto de Tomás parte 4 de 7


O quanto você consegue encarar do seu lado escuro?
Houve um tempo na gravidez em que eu me interessei bastante pela dor. O que seria a dor do parto? As pessoas diziam que era a pior dor do mundo, mas como saber se cada um tem seu limiar de dor? E a dor de dente de um é a dor no fígado do outro?
Eu tinha algumas frases soltas na cabeça. É uma dor surpreendente. É uma dor que não vai te ferir. Ao contrário de dores que são sinal de perigo, esta é uma dor que é sinal de mudança, que é sinal de amor. É a dor que vai te fazer mãe. O resto é sensação. Eu estava racionalmente preparada para me aliar à dor. E o fiz por um bom tempo.
Elas vinham em ondas maiores e beirando o transe total. Eu agradecia, ainda que urrasse como um animal, e esperava pela outra. Me assustaram algumas vezes, espaçando entre si: era eu novamente com muito medo de me deixar levar. E quando minha razão não tinha mais cartas, a dor veio de vez e me dominou.
Eu lembro de flashes do corredor de casa, da banheira. De pedir para esfriar a água e morrer de frio e pedir para esquentá-la e morrer de calor. De gritar, gritar, gritar, sem nenhum pudor. Eu falava qualquer coisa. Pedi ajuda, implorei que aquilo parasse. Eram sentimentos conflitantes, misturados com um cansaço mental e físico. Eu que já tinha me apaixonado pelo fato de estar em trabalho de parto comecei a me cansar do tempo. Quanto tempo mais levaria? O que mais eu preciso fazer?
O bebê continuava alto, e eu atingi 9 cm de dilatação. Ele precisava nascer e eu precisava parir. Caminhava como um leão de um lado para o outro cada vez mais tinha vontade de sumir quando as contrações começavam. Dor? Sim, é dor, não é só sensação. De fato é uma dor que não te fere. Não fisicamente. Mas é uma dor que te apresenta seus demônios. E há que ter força para encará-los, eu sei bem hoje a cara e a forma dos meus. E (acho que) sei quais foram aqueles que permaneceram de pé, transformados em um único centímetro que segurava a cabeça do bebê ainda alta na pelve, enquanto as contrações continuavam torturando a minha cabeça, de forma que em um momento fossem minhas aliadas, divertidas, um misto de prazer e dor quase poético e no outro fossem desesperadoras, assustadoras, mais poderosas do que eu.
Quando eu lia relatos alheios que diziam que dói muito, eu não entendia a dimensão dessas pequenas letras. Dói muito.
Mas, (de verdade, eu não estou aqui para dourar pílula) a questão da dor do parto não é a dor física. Estranhamente, ela serve de pano para a verdadeira questão do parto: o quanto você consegue encarar do seu lado escuro. Tudo? Quase tudo? Nada? Eu olhava fixamente nos olhos do Pedro, buscando por algum sinal que me dissesse que aquilo estava para acabar. A doula me prometeu, está muito no fim, está chegando o expulsivo. A dor vai passar, você não vai sentir mais nada, só o seu bebê chegar. Ela me prometeu, eu lembro muito bem de ter ouvido, e de alguma forma eu não acreditei. E dali para frente passei a implorar que me levassem embora. Eu cheguei no fim da linha.
A poesia de parir um filho naturalmente enche hoje meus olhos, minha mente meu coração. Não sou militante de nada, cada um na sua. Cada mulher deve ter o direito de ser respeitada dentro de suas escolhas na hora de ter seu filho, nascido ou parido. Mas creio que seria fundamental que todas, todas saibam: parir naturalmente é uma experiência sem precedentes. Para mim faltou a última peça do quebra cabeça, que foi feita sinteticamente, pouco tempo depois na maca do hospital.
Cansaram de me ouvir pedir? Ficaram junto comigo com medo dos meus fantasmas? Previram uma possível complicação? Respeitaram a minha decisão, e para o hospital fomos. Confesso, eu estava aliviada, mas isso não quis dizer menos dor, ou menos contrações. Eram mais, mais longas, mais fortes, mais doloridas. Até ali eu ainda pude buscar posições. Mas descer as escadas, de casa para o carro, do carro para a cadeira, da cadeira para a maca, tudo o que eu podia fazer era chorar antes durante e depois todas elas.
Que fique bem claro: a minha remoção para o hospital foi feita por que eu pedi (quatro milhões de vezes). Não havia nenhuma complicação. O bebê incrivelmente estável, eu saudável, o líquido infinito continuava claro. Havia toda a possibilidade de ter terminado essa história em casa. O que faltou? Entrega. O que sobrou? Medo e culpa. A serem revistos quem sabe num próximo filho, ou nunca mais. Amor Fati.
O hospital, as enfermeiras, o anestesista e uma ou outra parturiente que estivesse por ali naquela noite vazia nunca mais vão se esquecer de mim. Sério, aquilo minha gente, era um escândalo. Até isso essa experiência maravilhosa de parir um filho te proporciona, eu que nunca havia feito nenhuma cena em local público guardo agora no currículo um rol de grosserias, gritarias e apelos em dó maior. Fiquei rouca por uma semana.
Não tenho fotos de um bom tempo dessa história, que fique na minha memória e na sua imaginação.

O "VB"do Vbac - Relato de parto de Tomás - parte 5 de 7

Ele sabia nascer
Mesmo anestesiada as dores não passavam. Foi então que a médica, um dos anjos que me acompanharam, me olhou com certa surpresa e disse: ele está aqui, ele desceu! Faz força Anne, ele vai nascer!!
Não sei escrever, descrever. Não inventaram as palavras.
Outro dos meus anjos segurava um espelho para que eu conseguisse ver alguma coisa: olha para ele, disse a médica, ele está aqui!
O bebê desceu tão logo eu recebi a anestesia. Segundo a equipe era o relaxamento que eu precisava para vencer o último centímetro e permitir que a preciosidade do meu filho, viesse sozinho em busca da saída.
Sem nenhuma alteração em seus batimentos, sem nenhum trauma, ele sabia nascer. Eu só fazia força. O Pedro parado na minha frente, com olhos arregalados e maravilhados, tentava fazer senso daquela cena: almas lavadas minha e dele, donos do nosso processo, do primeiro dia de contato à fecundação, do amor do gestar, sentir mexer, apalpar a barriga, da curiosidade sobre quem nos habitava, das últimas 48h em que foi mordido e estapeado, e foi tentado e resistiu bravamente a qualquer insinuação. Só me colocou para cima, só me apoiou. Não existe ninguém no mundo que compreenda aquele olhar, que mirava embasbacado poucos centímetros abaixo da cicatriz da cesárea que acompanhou e tentava em vão apontar um espelho para que eu olhasse. O meu filho sabia nascer, o pai dele sabia recebe-lo. Eu só fazia força.
Por conta da anestesia eu não senti vigorosamente o nascimento. Minhas pernas estavam inertes, eu sentia algum resquício da dor e um movimento, uma pressão. O Pedro me avisou, saiu a cabeça. Eu perguntei, ele está olhando para cima? Sempre tive a curiosidade de compreender a rotação do bebê dentro da pelve, e ali soube que o meu fez o trajeto clássico, rodopiou para a direita e se colocou de costas para o meu ventre. Clássico, lindo, ele sabia nascer. A médica suportou a sua cabeça e desenrolou o cordão circular duplo de seu pescoço.
Mais uma força, passaram os ombros e o resto do corpo. Gente, ele estava ali, saído de mim, de dentro de mim. Com os meus recursos, com o que eu pude oferecer, que foi lindo, foi tudo de mim, foi indescritível. Ali nada mais importava, o rebento veio ao meu colo, sujo, branco melecado, tossindo de barriga para baixo, voltado no meu seio direito. Joaquim mamou pela primeira vez muitas horas depois do nascimento, no seio esquerdo. O direito era o seio do novo bebê. Era tanta alegria, que eu demorei um tempo para querer saber: quem é você bebê?
Perguntei para a médica: é menino ou é menina? Veja você! ela disse. Oh, santa ignorância da cultura cesarista em que os partos são de propriedade do médico. Claro que vejo eu! Eu não estava amarrada, eu não tinha prazo. Deslizei a mão por entre as coxas e senti: nada. Meleca, mais meleca, nada. Eu tive uma menina? Fiquei com cara de palerma, uma menina seria uma emoção e tanto também.
Ela levantou a perninha, e vi um sacão roxo! Ah! Agora faz sentido, o meu Tomás. Eu sabia que era você. Nessa hora eu senti um flashback do primeiro xixi no palito às últimas horas sofridas do parto. Era você, eu sabia! Sempre foi você, Tomás. 
Ele tossia líquido no meu colo, eu deixei sua boquinha bem perto do seio, curiosa para ver o que fazem os bebês quando nascem e não são separados das mães. Tomás lambeu, lambeu. Eu lambi, lambi. Acariciei cabeça, membros, mãozinhas e dedos, beijei, beijei, beijei muito. Nunca vou esquecer do cheiro. Segui apalpando barriga, achei o cordão. Como eu queria ter encostado também no cordão de Joaquim e senti-lo pulsar, como pulsava o de Tomás, ainda se alimentando do meu corpo pelos últimos minutos que nos ligavam. Era um pulsar delicioso, uma textura deliciosa. Uma parte minha e dele que nos serviu por meses, que nos manteve ligados e vivos e que chegava ali ao fim de sua missão.
E ali, veio também a placenta. Pedro curioso foi ver de perto. Como vocês podem ver, somos uma família cheia de curiosidade. Um grande saco branco ligado a um lindo órgão vivo, sangue pulsante, cheio de veias, de onde sabiamente foi tirado o sangue para análise de saúde do Tomás ao invés de ser furado o recém nascido. Há alguns meses, acompanhei algumas reflexões em blogs sobre a placenta. Gente que come placenta, gente que planta, gente que nem liga, gente que não sabe nem do que se trata, gente que despreza.
Eu fazia parte do grupo nem te ligo. Depois do que passamos, virei gente que planta, ou plantaria, caso fosse permitido que a mãe a levasse consigo, assim como leva o bebê. Analisando friamente, aquele órgão lhe pertence não? Esteve com ela, alimentou seu filho, foi gerada dentro do seu corpo... eu sou gente que planta, ou plantaria a placenta. Como não pude, prestei minhas sinceras reverências, em agradecimento ao seu papel, antes que ela se fosse, logo após o corte do cordão, que já havia parado de pulsar as últimas gotinhas de sangue, todo o sangue do meu filho, cada mililitro a que ele tem direito. O menino ficou vermelho flamejante, de olhinhos puxados e cabelinho liso e preto, parecia mesmo o filho da índia que me classificaram ser.
A vida está diferente não? Me perguntou uma parteira muito sabida, dona de uma luta interminável em prol do parto humanizado, o novo parto, o parto ativo e fisiológico. Diferente? Eu respondi que não tenho palavras.
Não vão inventar essas palavras.
 

O "VB"do Vbac - Relato de Parto de Tomás - parte 6 de 7


Medo da separação
Sou radical. Apesar de me fantasiar de coluna do meio o tempo todo. Acho que isso me faz parecer mais amável, e acaba funcionando. Daí você planeja o cúmulo do parto humano, natural, domiciliar, florido, e acaba tendo uma experiência mista de humano, normal, hospitalar. Frio e calor, delicioso e assustador. Muito medo e muito amor. Eu posso fazer riminhas infames para sempre.
Estando no hospital, não havia como não contar, e como não agradecer imensamente a presença da equipe de profissionais que me atendeu. Um dia há muito tempo me disseram que você escolhe seu parto quando escolhe sua equipe. Não posso discordar. Não porque serão determinantes nos resultados, mas porque, sendo qualquer coisa parecida com a equipe que me atendeu, estarão ali para garantir o seu protagonismo, o seu direito e as suas vontades. E acima de tudo estarão ali para celebrar a nova vida, respeitosamente acolhendo, no silêncio, na penumbra.
Chegava a hora de sair da sala de pré-parto onde eu estive por mais de duas horas e meia com meu filho no colo à meia luz, e onde a maravilhosa equipe defendeu meu direito de ali permanecer, de ver o primeiro banho dado pelo pai ao alcance das minhas mãos, de ver a carinha de prazer do meu filho enquanto era ninado em águas quentes.
Me bateu um pavor: agora vão nos separar. Na catarse que passei quando fui provocada a encarar de vez  o parto ativo, o primeiro sentimento que me veio à tona com a questão hospitalar do parto foi exatamente esse. Vão me separar do meu filho. Não cabe mais na minha cabeça esse procedimento. Mães cosmopolitas no mundo todo podem achar natural, agradável, um momento para relaxar, descansar, recuperar. Eu vejo violência, eu sou radical.
Não se separam esses dois corpos assim, tão rápido após a chegada no mundo. Era a primeira vez em muito tempo que eu estava vazia. Era a primeira vez na vidinha dele que ele era indivíduo. Ali não se sabe onde começa a mãe e termina o filho. Não se pode separá-los. Me bateu um pavor.
E novamente devo graças à equipe. Mexeram seus pauzinhos? Ameaçaram a vida de alguém? Resolveram alegar que eu era maluca e oferecia risco à sociedade caso me levassem o menino, pelos gritos da entrada no hospital essa era uma boa desculpa. Sei lá. Fizeram um acordo, não havia forma de ele subir na maca comigo, para o quarto. Mas me prometeram que eu subia por um elevador, ele por outro, e tão logo eu estivesse no quarto, ele estaria também. Não foi exatamente isso – eles precisavam fazer sua entrada no berçário, tanto que nos pediram suas roupas e quando nos reencontramos minutos depois ele estava vestido – mas eu aceitei.
Pedro e Tomás foram para o berçário, me enrolaram algum tempo, duas enfermeiras curiosíssimas sobre o porque de se ter um parto normal depois de uma cesárea tão recente, se havia sido escolha minha, porque eu demorei tanto para ir ao hospital e infinitas perguntas maravilhadas sobre minhas tatuagens. Me enrolaram para não ter escândalo e subiram comigo para o quarto. Cadê o Tomás? Pedro estava lá.
Estão trazendo, juro. Ele pegou no telefone, a porta abriu e lá estava Tomás. Vestido na roupinha improvisada que o pai pegou às pressas na hora de abandonar o navio domiciliar e embarcar no bote do hospital. E Tomás mamou, mamou, mamou. Fitou, piscou, puxou os cabelos. Amanheceu e eu já estava completando 62h sem dormir. Agora sim, eu estava exausta.
Comecei a fazer o que fazem as mães de recém nascidos. Desmaiar entre uma mamada e outra. Permanecer acordada, checando respiração. Cheirar a cria, lamber a cria, ninar a cria. E curtir a felicidade de tê-la parido.
Mas eu ainda curti um tempo de castigo.
 
 
 

O "VB"do Vbac - Relato de parto de Tomás - parte 7 de 7


Tudo igual, tudo diferente
Estar em um hospital por causa de uma cirurgia é ruim. Estar em um hospital por causa de... nada é pior ainda. As enfermeiras entravam no quarto com suas fichas e protocolos e eram rapidamente desarmadas uma a uma.
-       Vim checar sua cicatriz.
-       Foi parto normal.
-       Não, da episiotomia.
-       Não fiz episio.
-       Mas e a laceração?
-       Períneo intacto. (Rá! 3.900kg de bebê e nem um pontinho!!)
-       Recomendamos que amamente 20minutos em cada seio.
-       Sou adepta da livre demanda.
-       Mas é importante para você não fissurar as mamas...
-       Fique tranquila, meu mais velho mama até hoje deu tudo certo.
-       Quando levarem o bebê...
-       Eu não autorizei levarem o bebê para lugar nenhum, obrigada.
-       Oque você está fazendo de pé?
-       Vou tomar banho.
-       Mas você precisa repousar.
-       Estou bem obrigada.
Chegaram a me ligar no quarto 
- É você a naturalista?
- Oi?
- É você a mãe que está cuidando sozinha do bebê?
Morri de rir.
Depois do banho parecia que eu podia correr a meia maratona. Aos poucos as enfermeiras foram se acostumando que a gente era uma família diferente dos protocolos. Não havia dieta especial, cicatriz a checar, nenhuma medicação prescrita, nenhum cuidado com o bebê. Nenhuma visita, nem nome na porta. Nenhuma flor, quase nenhuma ligação. Foi ficar no hospital de castigo, no silêncio por nada. Teve seu lado bom, da paz. Teve seu lado ruim, horrível e sofrido, e ele era um dos meus fantasmas, pequeno e loiro, atendia pelo nome de Joaquim. Logo cedo, entrei em pânico de novo: eu quero o meu filho mais velho aqui. Essa separação era de fato um dos maiores componentes na hora que eu decidi por um parto domiciliar. Eu não podia vislumbrar como seria ficar dias longe do Joaquim.
Foram 3 noites que ele dormiu na casa da minha mãe. É claro que entre todas as pessoas do mundo, se há alguém em quem confio, é nela. Mas de fato foi uma parte ruim dentro dessa experiência maravilhosa.
Ele entrou curioso e falante no quarto, onde estávamos no silêncio Pedro e eu fitando o pequeno Tomás. Sei que estavam juntos minha mãe e meu pai, e a eles eu dei pouquíssima atenção, sei que se sentiram excluídos demais do nascimento do Tomás, por decisão minha, por necessidade. E porque eu não podia perder nenhum segundo daquele momento mágico que é ver o filho mais velho encontrar o mais novo pela primeira vez.
Caminhou direto para a minha cama, onde estava o bebê. Olhava curioso enquanto eu dizia: filho o nenê nasceu, é o Tomás, venha ver.
-       Oi Tumás!! Tudo?
Foram as primeiras palavras de Joaquim para o irmão enquanto “afagava” seus cabelinhos ainda ensebados. Tudo? De tudo bem... era uma mania na época perguntar para todos: Tudo?
Tudo, Joaquim Tudo!!!
Foram 2 dias de clausura, com Joaquim passando os dias conosco e as noites na casa da avó. Estranho por estarmos em um hospital, mas tranquilo, só nós quatro, adaptando as crias à nova realidade e nos adaptando. Meus furacõezinhos se entenderam imediatamente, mamaram juntos pela primeira vez, uma sensação deliciosamente estranha.
Cheguei a comunicar o nascimento do Tomás, recebi infinitos comentários e desejos lindos de felicidades. Gente absolutamente amável, que nesses dois dias de retiro me trouxe lágrimas aos olhos, por me sentir querida, por desejar comigo que meu filho fosse feliz e saudável. Algumas mensagens por celular, alguns telefonemas. Mas nada de visitas, conforme nossa família precisava: eu não queria tirar os olhos dos dois em nenhum momento. Eu queria garantir que estivesse tudo bem com Joaquim, eu queria observar cada movimento dos dedinhos de Tomás.
Obtido o habeas-corpus fomos libertados no domingo de manhã, muito, muito cedo. Os pais do Pedro foram nos buscar, e em alguns minutos daquela manhã simpática de 18 de dezembro estávamos novamente reunidos, os quatro.
Em casa, a vida começou a tomar seu curso. O recesso de fim de ano me agraciou com um pai presente por mais de 15 dias. Seguiram o primeiro Natal do meu boneco, meu aniversário, festa de ano novo, tudo celebrado em petit comité, charmoso e de pijamas cheirando a leite, muito leite.
Poucos momentos de choradeiras, da mãe ou dos filhos. Infinitas fraldas espalhadas pela casa e alguns momentos de loucura. Tudo igual, tudo diferente. O parto, o Natal, a celebração do meu nascimento, o recomeço de um ano. Tudo poeticamente unido para nos trazer a nova vida em forma de Tomás.
Esse relato termina quando Tomás completa um mês (levemente atrasado, completou ontem, e o dia foi cheio!!). E que venham agora as experiências da nova mãe, com seus novos filhos. Transformados pela magia da chegada de uma nova vida.
 
Anne Rammi
Mãe de Joaquim e de Tomás que descobriu recentemente que Liberdade é um valor que pagamos muito caro quando escolhemso viver sem.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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O trabalho Relato de VBAC: O Parto do Tomás de Anne Rammi foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.

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