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terça-feira, 9 de julho de 2013

Daquilo que Cura


Costurando paninhos, a gente costura nossa história e nossa vida. Juntando fragmentos, a gente cria um todo que, apesar das emendas, fica uniforme. E ao olhar o trabalho pronto, com certo distanciamento, a gente percebe que tudo faz sentido...

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Em posts passados, falei da minha relação com o filme e livro Colcha de Retalhos. Falei também da relação da minha mãe com o patchwork e das coisas lindas que ela fez pra mim e minhas crias. Inconscientemente (ou não) foi tudo isso que me motivou a organizar a Oficina de Bordado Arpilleras com a Bianca Lanu.

Eu NUNCA organizei nada na vida. Entro em pânico quando penso em listas, organização de espaços e pequenos detalhes. Sempre procuro respaldo da minha mãe, que tem mais experiência, conhecimento e habilidade do que eu nesse quesito da vida. Dessa vez, eu corri atrás de tudo, desde encontrar um local, passando pela divulgação, até a preparação do café. Assei um bolo de laranja no sábado à noite e acordei 5h30 da manhã pra assar pão de queijo. E fomos.

Eu estava com medo da data, porque caiu no meio do feriado (9 de julho é feriado no estado de SP), medo de não haver procura, medo de mais uma tentativa minha prum trabalho em grupo ir por água abaixo. E só os deuses  sabem o quanto eu amo trabalhos em grupos, ainda mais de mulheres. Eu estava assustada, mas muito empolgada. Porque eu ia bordar, ia participar de um grupo, ia fazer uma atividade de arte.

 

Nunca bordei na vida. Malemá sei pregar botão em roupa. Mas e daí? O todo me atraiu. Ainda mais depois de entender o contexto das Arpilleras. Quando vi o vídeo Como Alitas de Chincol, chorei cântaros e só pensava na resiliência e coragem daquelas que começaram a fazer as telas no meio da ditadura chilena. A cena dos tecidos em fogo e depois as mãos recortando as rebarbas queimadas pra reaproveitar os retalhos nas telas é de matar! É transformar dor em arte, em expressão, em história.

Eu sou arteterapeuta de formação. Tenho todos os trabalhos que fiz na vida guardados e acredito muito no poder de cura que a expressão artística proporciona. Como psicóloga, acredito que toda e qualquer forma de expressão é válida. É por isso que escrevo. É por isso que eu faço colagens, pinto mandalas e desenho. É por isso que fui bordar.

O grupo foi pequeno, seis mulheres contando eu e Bianca. Minha mãe estava presente, duas colegas de faculdade e uma mulher que participa da Roda Bebedubem virtual e que até então eu não conhecia. Reencontrar Myrian e Denise numa oficina de bordado foi, no mínimo, inusitado. Conhecer pessoalmente Estela e Bianca foi mais uma das coisas incríveis que esse mundo interconectado proporciona. Ter minha mãe junto foi muito bom. Dividir com elas minha história e ouví-las foi surreal, mágico, até.

Reviver o trabalho de parto do Pirulito e falar tão abertamente ainda me deixa com uma sensação nebulosa. Incrível o distanciamento que eu venho construindo. Ou talvez tudo já esteja reorganizado, reestruturado e ressignificado, causando maior impacto nos outros do que em mim. Ou talvez seja só a cortina de fumaça pra eu não sentir tudo mais uma vez. Ainda é estranho. Ligia Moreiras Sena falou um pouco sobre isso aqui e aqui.


Foi tenso falar disso com minha mãe junto. Ela não tirava os olhos do trabalho dela. Nem imagino o que se passava dentro de sua mente, de seu coração. Porque não foi uma dor só minha, foi da família. É uma cicatriz na nossa história, algo que modificou o coletivo, não só a mim. E às vezes parece que virou um elefante branco no meio da sala, que todo mundo vê, mas ninguém quer falar dele. Uma espécie de tabu.

Minha tela retrata um desenho que eu fazia muito antes de engravidar da Pirulita (e quando já estava grávida mas ainda não sabia). Fazia muito tempo que eu não o fazia. Nem lembrava dele. Quando a Bianca sugeriu que colocássemos no papel a nossa experiência de gestação, parto ou maternidade, eu fiquei sem rumo, vazia. Tentei desenhar dois Pirulitos como os do logo do blog, mas não consegui. Fui riscando aleatoriamente e o tal desenho ressurgiu dos confins do inconsciente. Não sei o que ele significa, nunca parei pra pensar, mas tenho muitas versões do mesmo tema em diferentes materiais: carvão, grafite, pastel. E agora vou ter em tela, linha e tecido.

Numa análise rápida de materiais, carvão e grafite simbolizam tudo aquilo que ainda está sombrio, no inconsciente. São materiais que borram muito e você precisa lidar com as imperfeições e com o jogo de luz e sombras que surge. Então, quando desenhava com esses materiais, podemos considerar que eu estivesse expressando um desejo, algo que ainda me deixava insegura e incerta, sem saber qual seria o produto final.

Giz pastel é um material mais fácil de controlar. Cores expressam sentimentos e emoções. Usar tal material é dar forma e vida ao desenho. Lembro que comecei a fazer o tal desenho com pastel quando já estava grávida da Pirulita, sendo que foi nessa mesma época que comecei a pintar com aquarela e a fazer mandalas. Eu começava a ter a vivência, as emoções e sensações, buscando equilíbrio com as mandalas. Pirulita nasceu e eu nunca mais desenhei minha mulher-árvore-terra-céu.

 

Aí ela reapareceu nesse domingo. Pra bordar uma Arpillera, usamos linha, tesoura, agulha, tecido e tela (no caso em específico, saca de café). Numa análise simbólica, retalhos são fragmentos não só de tecidos, mas também de histórias. Os tecidos que usamos já passaram pelas mãos de muitas mulheres e carregam em si a essência de tantas histórias já contadas sobre eles. Histórias de maternidade, de entrega. Bianca, levando os tecidos de cidade em cidade, é uma espécie de contadora de histórias, um bardo, que perpetua esses contos fantásticos.

A linha, na mitologia grega, é um símbolo forte de vida e destino. As Moiras teciam, fiavam e cortavam o fio da vida, decidindo quantos anos um ser humano viveria e se sua vida seria cheia de percalços ou não, de acordo com a qualidade do fio. Medir a linha que se usa e cortá-la equivale a medir a duração daquela história, até que ponto se quer contar. Nos mitos, bordado, fiação e tecelagem são artes manuais dedicadas à Atena, deusa da sabedoria e da justiça. São artes exatas, que precisam de organização e precisão. Com isso, organizam o universo simbólico.

Ao desenharmos antes o que vai na tela, estruturamos nossa história. Ao organizarmos os retalhos sobre a tela, ordenamos os pedaços espalhados; ao unirmos os fragmentos, damos coerência e consistência de forma mais objetiva (a agulha, com sua ponta afiada e certeira, é um símbolo de objetividade); ao cortarmos o fio, damos a intensidade e duração da história. E a saca de café? A saca nos une à Grande Mãe, berço de todas as experiências maternas, arquétipo básico em todo ser humano e em todas relações. Essencialmente, uma Arpillera possui, então, alto poder de integração.

E sinto que foi isso que fui buscar  nesse domingo: integração. Uma busca que vem se tornando mais intensa desde o nascimento do Pirulito e que consegui expressar por escrito quando fiz o Coaching para Mulheres. As peças estão se juntando aos poucos, tomando forma. E parece que agora estou a fazer o bordado, a costura que une as diferentes partes do quebra-cabeças num todo harmonioso. Bordar minha mulher-árvore-terra-céu, além de simbolizar minha própria caminhada na maternidade, simboliza minha transformação, minhas escolhas e meu caminho. Simboliza a junção da mulher-mãe-psicóloga-blogueira-ativista numa pessoa só. Simboliza a profunda e íntima relação de cada um desses aspectos entre si. Eles não são excludentes, são complementares. Finalmente entendi.

*****

À noite, tomando vinho com maridão, brindamos o sucesso da Oficina e uma sugestão dada pela Bianca:

-Mô, será que eu tô no caminho certo?

-É, tá parecendo que dessa vez você acertou em cheio...

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Em tempo: Kátia, obrigada pela visita, pelo abraço carinhoso e apertado e pelas palavras lindas. Fiquei muito emocionada e feliz!

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3 comentários:

  1. Nossa. Um dos relatos mais lindos q li, tocante, reflexivo, sincero!
    E, sua integração tb me leva a minha, e ser a portadora dos tecidos, de lá e cá só me faz tb ter a certeza - mais uma vez, q estou no caminho do amor <3
    Gratidão, Eli, por tdo! E, num é à toa q meu relato foi o 1o., q eu apoie e adoro o 31 em 31, e vc vc organizou esse encontro. Agora num tem jeito, já virou comadre ;)

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    1. Agora quem tá com lágrima no zóio e um sorriso na cara sou eu, comadre...

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  2. Lindo texto Elaine!! Parabéns!! Concordo quando diz que esse trabalho trouxe-nos cura, sim, trouxe muita reflexão, emoção, lembranças... Esse momento, pra mim, também é muito especial, pq preciso juntar algumas partes e criar outras, costurar, bordar sonhos e realizar muito ainda... como bordar desenhos fez-me materializar sonhos antes tão esquecidos... eu tenho uma certa sensibilidade que não sei muito o que fazer com ela... rs... será que ela poderá se mostrar através de uns retalhos unidos com amor e muita paciência? rs... sim, pq percebi que não se borda com pressa, com ansiedade... enfim, agradeço muito o convite pra oficina, por ter reencontrado vc, sua mãe e a Denise, por ter conhecido a Estela e a querida Bianca, um doce de pessoa! Seguimos bordando sonhos meninas!! Super beijos!!

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