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sexta-feira, 17 de maio de 2013

Relato de VBAC: Renata e Luca

Tem tanto tempo que nem sei por onde começar. Aliás, até hoje me pergunto onde começou o parto do Luca? O trabalho de parto? Onde começou esse parto da mãe do Luca, que certamente ainda não acabou? Acho que nós, mães, nos parimos a cada dia, numa eterna transformação. 

Uma semana antes, 10 de maio mais ou menos, meu marido e eu tivemos um sério desentendimento. Ele havia me contado que viajaria a trabalho no domingo, às vésperas de completarmos 39 semanas de gestação, e que ficaria dois dias (e duas noites) fora. Eu pedi, argumentei, até implorei pra que ele não fosse. Imaginem eu, uma barriga imensa, uma filha de 5 anos pra cuidar e, o pior, a intuição (que na ocasião eu não sabia que era intuição) de que o bebê chegaria. Pois então, essa era a situação. Não teve jeito, o cliente dele estava vindo da Itália, ainda havia muitas negociações a conduzir no contrato recém assinado, e a presença dele era imprescindível. E ele estava irredutível.

Na 6a. feira, 13, comi num rodízio japa, com minha mãe e minha filha. Comi muito, não sei como àquela altura eu ainda conseguia comer assim. Minha parteira apareceu no final do dia pra consulta pré-natal. Eu nem tive tempo de comentar com ela sobre a viagem do meu marido, ela já foi logo tocando no assunto. Eu me surpreendi com o fato dele tê-la procurado pra falar sobre isso. Ela intercedeu e procurou me tranquilizar. Bebê estava alto, o líquido ainda não parecia estar diminuindo, eu só tinha Braxton Hicks irregulares, tudo bem exceto pelo cansaço. Conversamos muito, eu, ela e minha filha sentadas na minha cama, e fiquei com a promessa de uma visita pra avaliação no domingo, antes da tal viagem. Ele iria somente na 2a. feira cedinho e havia garantido que haveria um jatinho à disposição dele caso ele precisasse voltar às pressas, ele estaria a duas horas de distância, isso tudo me deixou um pouco mais tranquila também.

O final de semana foi bom. Sábado a noite fiquei acordada até bem tarde terminando a varinha mágica que tinha começado a preparar pra irmã ganhar quando ele chegasse. Havia passado os últimos meses de gravidez contando a ela a história da varinha mágica que ajudava a menininha a encontrar muitos tesouros, como folhas, penas e conchas, e que termina com o tesouro mais precioso sendo encontrado: um bebê no quarto dos pais da menininha. Eu usei feltro, contas, brilhos e linhas grossas pra pendurar num pedacinho de galho folhas, conchas, borboletas e estrelas, e a varinha ficou pronta naquela madrugada. Senti um pouco de desconforto, sentada no escritório, tarde da noite, costurando e finalizando a varinha. Como passou quando deitei, achei que era puro cansaço e não dei importância. O domingo foi tranquilo, nossa querida parteira ligou pra saber de mim e eu mesma disse que ela não precisava vir, pois nada tinha mudado.

Na 2a. feira meu marido saiu antes do dia clarear. Fiquei com preguiça de sair da cama pra levar minha filhota pra escola e dormimos, eu e ela, até mais tarde. A massagista veio fazer uma massagem em mim, drenagem, tudo super tranquilo. Senti as contrações mais desconfortáveis, mas nada que me levasse a pensar em trabalho de parto. Nenhum sintoma mais palpável, nada. À noite minha mãe veio jantar com a gente. Perguntou se eu queria que ela dormisse aqui e eu disse que não precisava. Mas minha filha, que estava febril, começou a se queixar de dor de garganta e pipocaram umas erupções estranhas na pele dela. Ela adormeceu na minha cama, mas estava bem agitada, então pedi que minha mãe ficasse com a gente. Ela só adormeceu depois de comer uma maçã e tomar um antitérmico, que dei na esperança de que, baixando a febre, a acalmasse. Era em torno de 2 horas da manhã e ela realmente se acalmou e dormiu. Só que aí eu que não consegui mais dormir: showtime! 

Deitada, comecei a sentir as contrações (que eu inicialmente pensei ser as de treinamento, Braxton Hicks normais), mas elas começaram a ficar desconfortáveis. O desconforto persistia a ponto de eu não conseguir ficar deitada. Comecei a desconfiar que poderia ser trabalho de parto, mas que dúvida! A lua estava pra ficar cheia naquela 3a. feira, seria mesmo verdade que os bebês chegam na mesma lua da data da concepção? Eu tinha pra mim que Luca havia sido concebido numa lua cheia. 

Fiquei um tempo hesitante, comentei com minha mãe e lá pras 4:30h da manhã liguei pra parteira. Não lembro se o tampão começou a sair antes ou depois que falei com ela. Perguntei se deveria ligar pro meu marido - mas, de novo, que dúvida! -  pois não queria fazê-lo voltar correndo e ser um alarme falso. Essa era a minha única preocupação naquele momento. Ela me disse que viria mas sugeriu que eu tomasse um buscopan e, se em uma hora a dor não passasse, era trabalho de parto e eu então legaria pra ele. Tomei o buscopan e não de melhorar. Decidi não esperar mais e liguei para meu marido, contei o que estava acontecendo e que a parteira estava vindo pra casa. Ele, tempos depois, me contou que, ao acordar com minha ligação, foi despertado de um sonho premonitório sobre a chegada do nosso menino: eu e ele caminhávamos por um corredor ao lado de um prédio envidraçado. De repente, uma pessoa que estava sobre um andaime no alto do prédio despencava e, em vez de se esborrachar no chão, ficava presa pela corda de segurança. Antes mesmo da parteira chegar, liguei de novo pra ele, disse que ele viesse logo que o Luca ia chegar, naquele momento eu tinha certeza. Lembro que chorei no telefone e disse que ele viesse logo pois eu não conseguiria sem ele, ou algo assim.

Desde a hora que liguei pra parteira eu não consegui me deitar, ficava andando pela casa, a cada contração buscava uma forma de aliviar a dor: sentava no vaso sanitário, me apoiava contra a parede do corredor, entre outras tentativas, sempre respirando fundo e pensando que a cada contração o caminho do Luca ia se abrindo pra gente se encontrar. Pedi a minha mãe que fizesse massagem na minha lombar, caminhei, espiava minha fihota dormindo, e tudo foi ficando enevoado, a ponto de não me lembrar mais direito da sequência de fatos ou mesmo das dores e das sensações que tinha. Contar o tempo das contrações e dos intervalos então...em momento algum fiz isso, admiro quem consegue. Eu certamente apaguei meu neocórtex.

Lembro da parteira chegando, eram umas 6h da manhã.  E da massagem que ela fez na minha lombar, com as mãos quentes e um óleo que pareceu delicioso, me trouxe um grande alívio. Acho que minhas lembranças enevoadas se restringem a impressões sensoriais, como essa. Lembro dela ligando pro obstetra backup dizendo que tinha chegado aqui, e depois falando pra mim que ligaria pra uma enfermeira que a auxiliaria (essa enfermeira me acompanhou também durante a gestação, ela tem um lindo trabalho de corpo para a gestação e preparação para o parto). Não era previsto que ela participasse do parto, mas no final das contas sua presença forte e querida foi importantíssima.

Lembro do meu pai, que veio a falecer 10 meses depois, chegando na minha casa, e eu o mandando embora e falando pra minha mãe que não o queria aqui (e ele não me atendeu). Lembro da minha mãe pegando minha filhota na minha cama e a levando pra continuar dormindo na sala. Lembro também dela aparecendo no quarto com a parteira pra me dar um beijo, segundo meu diário isso foi em torno de 7h da manhã. O irmãozinho dela estava chegando.

A partir desse momento ficamos no meu quarto, com a porta fechada, eu, a parteira e a enfermeira, até o Luca nascer. Meus pais e minha filha na sala e depois me contaram que não ouviram nem sequer um grito. Lembro que não parava quieta e que, num determinado momento, senti vontade de fazer força e...ploft! a bolsa estourou, o liquido se espalhou por todo o quarto (depois soube que tinha muito, muito liquido). Foi nessa hora que perguntei à parteira como estava indo, e ela me disse que muito bem. Aenfermeira foi encher a banheira, no banheiro da minha filha (no meu não tem banheira), mas ela nunca chegou a ser usada. Pedi pra parteira checar a dilatação e ela fez o primeiro e único toque durante toda a gestação e parto: dilatação total. Eram 9 horas da manhã. Não lembro dela checando os batimentos do coraçãozinho do Luca até esse momento. E até então, também não lembro de pensar no meu marido, se ele estava voltando, se ia chegar a tempo ou não, nada. Nesse momento então, concluo, saí um pouco do transe - eu partolândia? - com que atravessei a a fase de dilatação.

Aquela névoa se dissipa e tudo se clareou, eu estava consciente do que estava acontecendo. A vontade de fazer força vinha e eu fazia, mas parecia que de nada adiantava, parecia insuficiente, parecia que Luca não saía do lugar. E no intervalo entre as contrações e puxos eu sentia um grande desconforto, o que nem de perto aconteceu durante todo o período de dilatação. Comecei a me desesperar e a achar que eu não conseguiria colocá-lo pra fora. Tentei várias posições, a parteira sugeriu a banqueta, com a enfermeira me amparando pro trás. Era meu corpo travando eu voltando da deliciosa viagem pela partolândia direto pro mental, e pro medo. Perguntei se não devíamos ir ao hospital e a parteira disse que não, que estava tudo certo. Lembro que ela ouviu o coraçãozinho do Luca algumas vezes durante esse expulsivo. Eu não conseguia chorar embora sentisse um desespero enorme - que sensação estranha! - e medo do meu bebê ficar entalado (essa expressão ridícula mas é a que melhor define minha sensação) dentro de mim.

Algum tempo depois, posições e tentativas frustradas,a parteira me falou pra sentar na banqueta e disse que em três contrações eu ia colocar o bebê pra fora. Ela me deu uma bronca, mesmo. Mas passaram as três contrações e nada, Luca não descia, não coroava. Eu conseguia sentir o topo da cabeça dele com a ponta dos dedos. Ela ouviu o coraçãozinho mais uma vez e então me pediu que deitasse e apoiasse os pés na frente dos ombros dela e que fizesse bastante força quando viesse a vontade. Eu estava com a cabeça e as costas apoiadas na enfermeira (normalmente o marido é que acaba fazendo esse papel) e veio a vontade de fazer força: Luca desceu um pouco. Me senti aliviada nessa hora, mas estava exausta e com muito medo. Felizmente foram três puxos e a cabecinha do Luca saiu, e eu senti um alívio enorme. Mais uma e acaba, lembro que a parteira falou. Mais um puxo e eu senti seu corpinho escorregando pra fora. Foi a melhor e mais intensa sensação que já senti. Até hoje me pergunto se foi alívio ou o que. Eram 10:38h do dia 17 de maio de 2011, no meio do portal cósmico aberto com a lua cheia de touro, o tão celebrado Wesak dos budistas. Meu menino dourado, meu solzinho chegava, redondinho e miúdo, com os cílios e sobrancelhas branquinhos e muito parecido com o pai.

Ele veio direto para meu peito, e demorou a parar de chorar. Diferente da minha filha que, ao nascer por meio de uma cesárea intraparto, parou de chorar imediatamente quando veio para meu peito. Ele mamou logo, diferente dela, que não pegou o peito. Segundo a parteira, na hora em que ele estava saindo pras mãos dela, fez um mega mecônio que se espatifou no chão do quarto.

Lembro de pedir pra elas trazerem minha filhota para o quarto pra conhecer o irmão, e logo ela e minha mãe apareceram. Não lembro quando meu pai viu o Luca pela primeira vez. 

Meu marido chegou poucos minutos depois do nascimento, o cordão ainda pulsava. O tempo feio no Rio impediu que o piloto conseguisse o plano de voo de imediato. Depois tiveram muita dificuldade de pousar no Santos Dumont, quase pousaram em Jacarepaguá, mas acabaram conseguindo. Ele passou o voo todo trocando sms com minha mãe e em determinado momento até ligou e falou com a parteira, que disse a ele que podia esquecer que não ia dar tempo. Mas ele chegou a tempo de ver o cordão que ligava nosso menino a mim ainda pulsando. Lembro com muita nitidez da expressão em seu rosto quando entrou no quarto. Ele lembra que eu fiz uma forcinha pra placenta sair, eu não me lembro disso.

Lembro também que caiu uma mega chuva naquela manhã, depois do nascimento. Eu não sentia fome nem sede, a enfermeira insistiu pra que eu comesse alguma coisa e eu não sentia vontade de nada, até que resolvi tomar um suco verde. Meu marido fez pra mim.

E lembro, enfim, que naquele dia me senti plena e feliz como nunca, quase eufórica, e grata às duas almas especiais que me apoiaram, ajudaram meu bebe a sair e eu a conseguir parir, era o meu VBAC! Sei, hoje, que muito além do VBAC conquistado, esse parto foi a cura, para mim, do trauma do meu próprio nascimento à fórceps, que foi o que possivelmente impediu meu corpo de continuar funcionando e fluindo com o trabalho de parto. E que também possivelmente havia determinado o mal posicionamento de minha filha mais velha em seu parto (ela estava "de face" e não encaixou), o que levou à necessidade da cesárea (não vou aqui entrar no mérito da série de intervenções que sofri durante o trabalho de parto dela, o conhecido "pacote completo", que com certeza também pesou e muito naquele desfecho). No parto dela entre a dilatação total e a decisão pela cesárea transcorreram três horas, no do Luca meu expulsivo durou quase 2 horas. Ele nasceu muito bem, com apgar 9/10, apesar da tensão que eu senti ;-)

No pós parto uma laceração no períneo me incomodou bastante, mas as semanas de recolhimento dentro da caverna bem grudada com meu bebezinho foram um sonho, sinto muita saudade. Luca demorou uns dias pra tomar banho, acho que eu não queria perder o cheirinho de mar com que ele nasceu.

Certamente esse grande ritual de passagem que é o parto, não apenas para quem chega, mas para que está parindo, é imprescindível pra tornar um pouco mais fácil (ou menos difícil?) nossa jornada pela maternidade. Nasceu o bebê Luca e uma nova mulher, nova Renata, nova mãe, mãe de dois, mais forte, corajosa e preparada para a vida.

 



 Renata Matteoni
Ser mãe (de uma menina de 7 anos e de um menininho de 1 ano e 10 meses) é meu core business, mas além disso também sou diretora da ANEP Brasil, educadora pré-natal, seminarista waldorf e advogada.








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